Relato de palestra proferida por Sua Santidade o XVII Karmapa, em 29 de Maio de 2016, em Bulach, Suíça
O Karmapa sentou-se, no palco, em uma poltrona confortável, forrada com brocado vermelho e dourado, para esta sessão final, realizada em sua última tarde na Suíça.
Ele começou recordando a sua própria infância em uma área remota do Tibete, desprovida de tecnologia moderna e de outros aspectos do mundo contemporâneo. Dentro dessa cultura muito tradicional, o mundo natural era visto como sagrado e tratado com grande respeito. As pessoas pensavam que as montanhas e outros locais eram sistemas vivos e serviam de moradia para muitas divindades. Não havia resíduos plásticos e nem a necessidade de caixotes de lixo já que tudo era orgânico e biodegradável. Consequentemente, quando os invólucros de plástico finalmente ali chegaram, as pessoas simplesmente os jogavam fora, pois não estavam cientes de que o plástico não é biodegradável. A vida doméstica era simples. Tudo o que possuíam tinha um uso na vida diária e não havia televisão ou coisas do gênero. “O que eu via nesta cultura tibetana era o princípio do ser feliz e contente com pouco,” Sua Santidade comentou. “Estar contente com pouco e ter poucos desejos é uma prática importante no budismo.”
Ele passou a esclarecer como isso era especialmente verdadeiro para os monges e monjas. Em tibetano, o Karmapa explicou, as palavras para um monge completamente ordenado (gelong) e uma monja completamente ordenada (gelongma) são compostas por duas palavras. Ge [Tib. dge] significa “virtuoso” e longwa [Tib. Slong ba] significa “mendicante”; então, em tibetano, um monge (bhikshu) ou ou uma monja (bhikshuni) são “mendicantes virtuosos.” Eles mantêm os votos mais elevados, Sua Santidade observou, e sua prática fundamental é estar contente e viver com poucos desejos e poucas coisas. Tradicionalmente, se as vestes de um monge estivessem rasgadas, elas eram remendadas, e quando estavam muito esfarrapadas para serem usadas, eram lavadas e utilizadas como trapos, e, finalmente, quando já não podiam ser utilizadas como trapos, eram acrescentadas na fabricação de tijolos. Nada jamais era desperdiçado. Também era proibido para monges e monjas ter pertences pessoais. Assim era como o Buda e sua Sangha viviam, similar ao socialismo dos tempos modernos.
O Buda foi o primeiro a introduzir uma administração para a Sangha, e mais tarde na tradição surgiram as grandes universidades monásticas, como Nalanda e Vikramashila. Estas foram as primeiras universidades do mundo, e tinham regras para administração e finanças. No entanto, reis e leigos trouxeram oferendas, o que criou um problema, pois os monges não eram autorizados a possuir coisas. Assim, os mosteiros construíram tesourarias especiais para armazenar as oferendas. Quando exércitos invadiram a Índia, primeiro atacaram os mosteiros, destruindo-os e tomando esses tesouros.
O Karmapa, em seguida, relacionou a questão de viver com menos com a questão do meio ambiente: “Eu quero falar sobre viver com menos sendo contente, como uma forma de proteger o meio ambiente”, afirmou.
A ciência tem fornecido muita informação sobre a crise ambiental, ele continuou, mas o conhecimento por si só não foi suficiente. O cerne da questão é como transformar o conhecimento em ação.
O Karmapa fez várias recomendações. Primeiro, os cientistas ambientais poderiam consultar e atuar em conjunto com os líderes religiosos acerca dos meios para se proteger o ambiente. Em segundo lugar, cada um de nós deveria fazer uma avaliação honesta de nossa vida diária e de seu impacto sobre o meio ambiente, para que possamos mudar a forma como vivemos, a fim de proteger o ambiente. Em terceiro lugar, como a motivação é a chave, todos precisamos desenvolver nossa motivação, para que ela se torne mais forte.
Informações, estatísticas e conhecimento envolvem o nosso intelecto, mas não necessariamente trazem uma mudança de coração ou uma mudança no comportamento, ele comentou. Avisos e imagens gráficas nos maços de cigarros, por exemplo, não detiveram os fumantes. A ignorância nos seres humanos é tão forte que muitas vezes nós não reconhecemos o modo como as coisas realmente são.
Em quarto lugar, nós devemos desenvolver o contentamento interior, descrito por Sua Santidade como “um recurso natural.” Quando temos contentamento, sentimos que temos tudo o que é necessário. Aprender a ter contentamento é mais importante do que ter menos desejos, explicou, porque sem o contentamento nunca nos sentiremos satisfeitos: sempre teremos desejos não realizados e a sensação de que nos falta alguma coisa.
Retomando um tema de palestras anteriores, o Karmapa sugeriu como poderíamos desenvolver o contentamento por meio da prática de meditação: repousamos a nossa consciência na respiração e nos concentramos no momento presente, não perseguindo memórias do passado ou especulando sobre o futuro. Por meio de práticas como essa, o contentamento interior pode crescer progressivamente. Quando, às vezes, nos sentirmos um pouco desamparados, ou pensarmos que nos falta alguma coisa, ou nos sentirmos perdidos, poderemos experimentar felicidade se lembrarmos de nos concentrarmos em nossa respiração. Além disso, o foco na respiração nos lembra da nossa interdependência com o meio ambiente e com as plantas que nos fornecem o oxigênio que precisamos. A respiração pode tornar-se algo surpreendente.
No entanto, por causa dos nossos desejos constantes, nossa mente e corpo não são capazes de encontrar a paz. “Em algum momento, nós temos que dar um basta,” Sua Santidade avisou, pois os desejos podem ser ilimitados, e se tivermos desejos intensos, seremos incapazes de encontrar contentamento. Em última análise, é preciso dar mais um passo, virar as costas para os nossos desejos e permitir que o apego se vá. Esta é a renúncia.
O princípio da renúncia implica rejeitar os constructos sociais da sociedade em que vivemos. Sua Santidade apontou para um exemplo de Nova Deli, na Índia. Quando ele foi para a Índia em 2000, havia muito menos carros circulando, mas agora há engarrafamentos em toda parte e o ar é muito poluído. Grande parte do problema se deve aos mais de cinco milhões de carros particulares, o que é agravado pela adição de 4000 a 5000 carros novos todos os dias. Sua Santidade contou que perguntara a um motorista tibetano por que havia tantos carros, e o motorista respondeu: “Quando o seu vizinho compra um carro, você tem que comprar um carro também.”
“Esta é a situação hoje”, Sua Santidade comentou. Ao invés de usamos a nossa própria inteligência e sabedoria, sob o poder da ignorância, apenas seguimos o que as outras pessoas fazem. Nós estamos sob a influência de fatores externos e de circunstâncias que determinam nossas vidas. Quando falamos sobre renúncia e sobre desapegar do desejo, isso significa que não estamos mais sob estas influências, e sim, que temos a inteligência e sabedoria para escolher nosso próprio caminho. Temos que reconhecer que o que a sociedade apresenta como real é mais como uma ilusão, ele continuou, e então nós poderemos seguir o nosso próprio caminho.
Ao final, a questão é assumir a responsabilidade por nossas ações. Se comprarmos um carro, essa é a nossa decisão; porém, essa decisão tem consequências. Quando dirigimos o carro na estrada nós aumentamos a poluição do ar, os congestionamentos de tráfego, e assim por diante. Não podemos evitar viver em sociedade e deveríamos viver em harmonia com todos, todavia, é fundamental que saibamos a maneira correta de agir.
O Karmapa, em seguida, abriu a palavra para perguntas.
O primeiro participante pediu seu conselho sobre soluções práticas para proteger o meio ambiente, incluindo o vegetarianismo. Ao fazer compras, não deveríamos apenas pensar no que queremos como indivíduos, e sim, em como nossas compras afetam o meio ambiente. No que diz respeito ao vegetarianismo, como indivíduos compassivos podemos querer deixar de comer carne ou reduzir a quantidade que comemos, e isso terá um efeito positivo sobre o meio ambiente.
A segunda questão apresentou o dilema de um vegetariano que tem que comprar e preparar carne para o consumo de outros.
Sua Santidade explicou que durante o tempo do Buda, a Sangha tinha permissão de comer carne com certas restrições, tal como a do animal não tendo sido especialmente morto para alimentar a sangha. Se temos de preparar carne, há mantras que podem ser recitados ou podemos recitar os nomes dos Budas. Se comermos carne, é bom fazermos orações de aspiração e dedicação [de mérito] para o animal que morreu.
Na terceira pergunta, um estudante perguntou o que fazer quando o lama-raiz morre. Seria necessário encontrar um outro lama ou pode-se continuar a praticar com base nas instruções do lama que faleceu?
Sua Santidade explicou que há diferentes maneiras de receber o Dharma, e é possível ter diferentes lamas, às vezes de diferentes linhagens de transmissão. Todos os grandes mestres que restabeleceram os ensinamentos no Tibete eram não-sectários e receberam ensinamentos de lamas de diferentes tradições. No entanto, quando temos diferentes lamas, existe o perigo de nos tornarmos confusos. Nosso lama-raiz é aquele com quem possuímos uma conexão mais forte, e pelo qual sentimos a maior devoção e afeição. Esse lama-raiz não tem que ser um lama vivo. Se tivermos profunda devoção e uma conexão forte, podemos continuar a orar ao nosso lama-raiz após eles terem falecido. Se encontrarmos dificuldades em nossa prática, é melhor consultar um lama que esteja vivo; contudo, o nosso lama-raiz permanece em nosso coração, e a conexão com eles continua.
Voltando ao tema do meio ambiente, na pergunta seguinte foi pedida a opinião do Karmapa sobre a possibilidade da Terra se recuperar, caso os seres humanos mudem o seu comportamento.
“Esperar que a Terra se recupere não ajuda muito”, Sua Santidade começou, “devemos realmente fazer alguma coisa.” Uma maior incidência de catástrofes naturais pode ser um grito de alerta, porém, não é fácil mudar o nosso comportamento e nossas atitudes. A crise ambiental é de grande escala e é difícil mudar a situação totalmente. Entretanto, há um ditado tibetano que diz “gota a gota o oceano fica cheio. Gota a gota um buraco é feito na rocha.” Se todos trabalharmos juntos, poderemos fazer alguma coisa. Esperarmos dos governos poderia custar um longo tempo, por isso temos que tomar nossa própria decisão e agir. Nós podemos optar por usar coisas que são menos prejudiciais ao meio ambiente. Se mudássemos o nosso modo de consumir, o Karmapa sugeriu, estaríamos dando um exemplo para os outros, e efetuaríamos uma mudança em suas atitudes também.
Como conclusão, Sua Santidade expressou sua profunda gratidão a todos aqueles que trabalharam para tornar esta primeira visita à Suíça um sucesso tão grande, e reiterou sua esperança de retornar à Suíça e também de visitar outros países europeus no futuro. Agradeceu especialmente a Namkha Rinpoche e ao escritório de Sua Santidade o Dalai Lama na Suíça.
Por último, o Presidente da [Associação] Rigdzin Suíça, Andres Larrain, levantou-se e replicou com um discurso de agradecimento a Sua Santidade, fazendo um histórico da visita do Karmapa e transmitindo a gratidão de todos para as “bênçãos inexprimíveis” que ele concedeu durante o seu tempo na Suíça. As palavras do presidente expressaram a experiência de todos aqueles afortunados o suficiente para assistir os ensinamentos: “Você nos ensinou as profundezas do Budismo de uma forma que foi, ao mesmo tempo, profunda, fácil de entender, e com um brilhante senso de humor.”
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Original em inglês disponível em: http://kagyuoffice.org/buddhism-and-the-environment-being-content-to-live-with-less/
Tradução para o português KTC – Cláudia Carréra
KTC, julho de 2016
© Kagyu Office – http://kagyuoffice.org/
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