(4 de abril de 2015 – Mount Laurel, New Jersey)
Sua Santidade, o 17º Karmapa, está no momento visitando o primeiro centro de Dharma em sua viagem de dois meses aos Estados Unidos. Em seu primeiro dia de atividades nesse centro de Dharma, ele transmitiu ensinamentos sobre meditação, respondeu a uma longa série de perguntas de estudantes e concedeu uma iniciação na parte da tarde.
Como seria adequado a uma viagem voltada para as universidades, a primeira iniciação que Sua Santidade conferiu em sua jornada de dois meses nos Estados Unidos, foi a iniciação de Manjushri, um ser iluminado especialmente ligado ao cultivo da sabedoria. Os ensinamentos e a iniciação foram concedidos para atender à requisição do centro Karma Thegsum Choling – New Jersey (KTC-NJ), localizado nos arredores da cidade de Shamong, no sul de New Jersey, que serve tanto como um centro de Dharma, como um lugar de estadia para o Karmapa durante suas viagens aos Estados Unidos.
O dia estava particularmente auspicioso para dar início a esse componente Budista mais tradicional da viagem de Karmapa: com a lua cheia e o eclipse lunar total acontecendo hoje, considera-se que os efeitos das ações meritórias são multiplicados por muitas vezes. A manhã estava limpa e fresca e uma leve brisa agitava o ar quando o Karmapa deixou o KTC-NJ em direção ao lugar onde ensinaria, um auditório perto da cidade de Mount Laurel. A viagem de meia hora até esse local passa por um pitoresco cenário rural, pontilhado por plantações e grandes fazendas. Enquanto isso, mais de 700 pessoas já estavam acomodadas no auditório alugado em Westin Mount Laurel – elas haviam chegado lá com bastante antecedência.
O 17º Karmapa iniciou comentando que, após tantas palestras em universidades falando de assuntos que não eram especificamente budistas, ele sentia que falar agora sobre o Dharma era como pegar um repentino retorno na estrada.
Refletindo sobre suas experiências durante a viagem, Sua Santidade comentou que, em suas visitas às sedes do Google e do Facebook, ele percebera que ali também estavam sendo criados espaços para que os funcionários pudessem meditar e que as duas empresas incentivavam a consciência plena no ambiente de trabalho. “É excelente que todos tenham a oportunidade de praticar a meditação”, disse ele. Entretanto, mesmo aprovando tais iniciativas, o Karmapa fez uma importante advertência.
“Uma vez que a meditação, por sua própria natureza, deve ser algo pessoal e individual que cada pessoa experimenta do seu próprio jeito, a partir de suas necessidades e disposições, em suas descobertas particulares, eu acredito que ela (a meditação) jamais deve ser comercializada ou usada com propósitos comerciais. ”
Sua Santidade retornou ao mesmo tema mais tarde, apontando a maneira como a yoga é às vezes divulgada como uma forma de exercício físico, apesar de tradicionalmente ser uma forma altamente rigorosa de treinamento espiritual. “Hoje em dia muitas pessoas estão interessadas no Budismo, especialmente na meditação. Mas muitos acham que a meditação é uma espécie de terapia espiritual, de massagem espiritual. Tais pessoas esperam que, através da prática da meditação, conseguirão relaxar e reduzir o stress e a pressão que sentem em suas vidas ocupadas. Relaxar é bom, mas é diferente da prática de meditação completa que é ensinada pelo Budismo. Esta requer um treinamento mais exclusivo e intenso. Eu acredito que esperar que a meditação trará mais calma e conforto íntimo pode causar uma certa desilusão. Na verdade, eu acho que a intensa prática de meditação provavelmente produzirá muito desconforto inicialmente, pois é difícil se livrar de velhos hábitos e na prática da meditação tentamos substituir muitos de nossos velhos e negativos hábitos por outros novos. Isso vai contra a essência de nossas personalidades e, por isso, provavelmente será algo difícil e desconfortável.
Apresentando a meditação dentro do contexto Budista, Sua Santidade explicou que há, em termos gerais, dois tipos de meditação – meditação estabilizadora e meditação analítica. Sem os fundamentos da shamata, que é considerada como meditação estabilizada, seria muito difícil desenvolver a vipassana. Sua Santidade explicou que no início, para conseguirmos desenvolver a shamata, precisamos de um ambiente quieto e isolado e que o treino da shamata usualmente leva de três a seis semanas.
“Entretanto, um ambiente quieto e isolado não quer dizer somente um lugar fisicamente quieto”, explicou ele. “Quer dizer também um lugar isolado de distrações tais como celulares, internet e por aí vai. ”
Observando que, apesar de existirem, no Ocidente, vários grupos de meditação que se reúnem semanalmente para meditar durante algumas horas, S.S. comentou que não tem certeza se esse número de horas é suficiente para verdadeiramente desenvolver a shamata. Ele, então, propôs uma sugestão que fomentou diversas conversas mais tarde, no intervalo entre as sessões.
“Até agora, retiros de Dharma, onde as pessoas podem se dedicar exclusivamente ao treino ou prática da shamata durante vários meses são muito raros. Desse modo, eu os encorajo a criar eventos e oportunidades para a prática intensiva e longa (de vários meses) da shamata nos países ocidentais. ” – Disse Sua Santidade.
Aprofundando ainda mais o assunto, o Karmapa ressaltou que é importante que a nossa prática de shamata atue como um antídoto para as nossas emoções negativas ou kleshas.
“O objetivo da prática da shamata não é simplesmente atingir paz de espírito ou conforto e relaxamento mental. Na verdade, a prática da shamata existe para aprimorar as nossas mentes e mudar, para melhor, as nossas personalidades através do enfraquecimento e cura de nossos kleshas. Algumas pessoas acham que o mais importante da shamata é fazer alguém sentir-se bem, relaxado e confortável; mas a função real da shamata é servir como um remédio para os nossos kleshas. ”
“Não é suficiente praticar a meditação somente em nossos templos, sentados em nossas almofadas”, continuou S.S. “É necessário trazer a prática da shamata para todas as atividades pós-meditação, inclusive para o trabalho. É especialmente importante estarmos aptos a aplicá-la quando estivermos emocionalmente muito desequilibrados. ”
O Karmapa então colocou-se à disposição para responder às dúvidas da audiência, mas pediu que as perguntas ficassem restritas ao tópico da meditação. Um após o outro, vários alunos aproveitaram a rara oportunidade de poder fazer suas perguntas diretamente à Sua Santidade, o Karmapa, que, por sua vez, abriu o salão depois do intervalo do almoço para responder às questões adicionais.
O primeiro aluno, procurando aconselhar-se com Sua Santidade, apontou que no mundo moderno é difícil encontrar um ambiente isolado, apropriado para a prática da shamata.
“No século 21, junto com o tremendo progresso material que atingimos, nós também desenvolvemos hábitos extremamente consumistas e gananciosos”, respondeu S.S. Karmapa “Tais hábitos são obviamente encorajados por algumas mídias, e, em nossa ânsia pelas coisas materiais, somos impedidos de alcançar o isolamento e mental e a experiência de uma concentração sem distrações. ”
“Mesmo que não queiramos uma determinada coisa, sempre haverá alguma outra coisa para atrair o nosso desejo porque o comercialismo faz uso extensivo da psicologia para nos seduzir. Eu acho que se alguém tivesse oferecido um iPhone a Jetsun Milarepa, até mesmo ele ficaria ocupado com o aparelho por horas! ”
“A prevalência dos nossos confortos externos e de todos os aparelhos que nos cercam formam uma rede que nos captura e é muito difícil escaparmos dela. Eu penso que se conseguirmos relaxar nossas mentes e observar com cuidado a irrealidade do consumismo, nós poderemos reconquistar a nossa independência. Eu acredito que a independência é o primeiro passo para começarmos a desenvolver o isolamento mental ou a capacidade de não se distrair que é necessária para a prática da shamata. ”
Outra pergunta trouxe a questão da necessidade (ou não) de completar as práticas preliminares (ngondro) antes de começar o treinamento da meditação shamata. Sua Santidade explicou que há dois grupos de práticas preliminares: as quatro preliminares comuns, que englobam os quatro pensamentos que voltam a mente para o Dharma; e as quatro práticas incomuns, que englobam o refúgio e a bodhichita com prostrações, Vajrasattva, mandala e guru yoga. Ele observou que a maioria das pessoas se dedica muito mais a essas quatro últimas, as práticas incomuns do ngondro.
“A razão pela qual as pessoas preferem dedicar mais tempo às práticas incomuns é o fato de que estas podem ser numericamente contadas”, Sua Santidade comentou ironicamente, arrancando várias risadas da audiência. “Vocês contam os números e, porque estão contando, vocês têm um sentimento de que estão progredindo e isso é algo que as pessoas gostam de sentir. A contemplação das preliminares comuns são contemplações onde não há nada contável e, portanto, não oferecem ao praticante qualquer marco que possa dar uma sensação de avanço. E, no entanto, o verdadeiro sinal de avanço é o aprimoramento da mente e da personalidade. ”
Enfatizando seu ponto de vista, S.S. disse: “A contemplação das quatro preliminares comuns é muito importante e, na verdade, eu acho que as preliminares comuns são mais importantes do que as preliminares incomuns. ”
Respondendo a uma questão sobre como prosseguir a prática diante de obstáculos irremediáveis, o Karmapa disse que deveríamos ver as adversidades não como obstáculos, mas como oportunidades.
Do ponto de vista do Dharma propriamente dito, na verdade é melhor quando os praticantes experimentam adversidades porque estas ensinam mais lições e criam a chance de aplicar verdadeiramente a prática. Desse modo, os praticantes podem misturar a experiência da adversidade com a prática do Dharma.
“A questão é de que forma vemos a adversidade, ” disse Sua Santidade. “Se conseguirmos ver a adversidade como uma oportunidade para a prática, essa será a melhor maneira de usar a adversidade. Uma vez que uma situação adversa surge, nós não temos mais a opção de evitá-la, então só nos resta fazer o melhor uso dela. É perda de tempo ficarmos apenas lamentando isso ou aquilo. O que é mais importante é como encaramos a adversidade e que a tomemos como uma oportunidade.
Outro estudante perguntou ao Karmapa se havia ou não um conflito entre a prática do Dharma e o uso de medicamentos para o tratamento de doenças como a depressão e a ansiedade.
“Existe uma diferença entre os estados comuns e usuais da mente e as verdadeiras doenças da depressão e da ansiedade, ” Sua Santidade esclareceu. Quando a depressão ou a ansiedade não são somente alterações do estado mental, mas pronunciadas doenças, então estamos falando de um problema físico real que deve ser tratado por um remédio físico. Provavelmente não conseguiremos curar uma doença física apenas com o trabalho da mente. Desse modo, podemos dizer que, além de não haver contradição entre a prática do Dharma e o uso de antidepressivos ou ansiolíticos com supervisão médica, seria mesmo uma imprudência alguém interromper o uso dos medicamentos apenas porque tornou-se um praticante do Dharma. ”
“Às vezes, algumas pessoas que sofrem de depressão tornam-se Budistas e percebem que a prática do Dharma parece servir como remédio para a sua doença. Então, em um rompante de entusiasmo inicial, elas param de tomar seus medicamentos e terminam ficando muito mal. É insensato fazer isso. É claro que não queremos tomar tais remédios porque todos eles produzem efeitos colaterais e quando os tomamos é só porque precisamos deles. Idealmente nós queremos evoluir e chegar ao ponto de não precisarmos mais dos medicamentos e podermos gradualmente largá-los, mas não devemos fazer isso prematuramente. ”
Em resposta a uma questão sobre o melhor método para aumentar nossa sabedoria, Sua Santidade respondeu estabelecendo uma distinção entre sabedoria externa e sabedoria interna.
“Sabedoria externa é basicamente o conhecimento que adquirimos através do estudo. Frequentemente nossa mente torna-se instruída sobre tudo, exceto sobre si mesma. Somos sábios sobre tudo, exceto sobre a nossa mente, que de um modo geral, permanece absolutamente ignorante de si mesma. ”
Assim sendo, eu penso que o mais importante é ganhar a sabedoria ligada ao reconhecimento da própria mente. Eu acredito que essa é a base da verdadeira sabedoria. Nós chamamos isso de “um conhecimento que abre as portas para todos os outros conhecimentos”, porque, quando você ganha esse tipo de entendimento amplo, este inclui todos os outros e permite que o poder ou intensidade da sua sabedoria e capacidade de aprendizado aumentem naturalmente. ”
Quando outro estudante perguntou de que modo poderíamos praticar a meditação continuamente, durante as 24 horas de cada dia, S.S. alertou que não deveríamos nos forçar a fazer isso, pois não seria benéfico.
“É inviável tentar praticar meditação formal durante todo o dia e toda a noite. Mas talvez consigamos manter as nossas mentes em estado meditativo constante. A chave para isso é começar cada dia criando a intenção de fazê-lo, estabelecendo como meta do dia manter o estado meditativo. Com esse tipo de compromisso e aspiração, nós podemos periodicamente nos lembrarmos de nossa intenção de permanecer em estado meditativo”, explicou o Karmapa.
Sua Santidade então sugeriu um uso criativo da tecnologia moderna para ajudar-nos a permanecermos em estado meditativo durante todo o dia.
Os smartphones são muito úteis porque você pode programá-los para tocar ou vibrar onde quer que você esteja. Se você ajustar o alarme do seu smartphone para lembrá-lo a cada duas ou três horas da sua intenção criada no começo do dia de manter-se em estado meditativo, pode ser que você consiga sustentar a continuidade da meditação. ”
Na sessão da tarde, um estudante perguntou ao Karmapa se ele poderia aconselhar a respeito do exame ou da análise dos nossos kleshas. Em resposta, S.S. descreveu um remédio de três etapas para os kleshas, usando a raiva como um exemplo.
“O primeiro passo ao lidar com qualquer klesha é reconhecer os problemas que eles causam”, explicou ele. “Isso não pode ser feito através da escuta dos ensinamentos do seu guru ou mesmo do estudo dos ensinamentos do Buda sobre este ou aquele klesha – você precisa reconhecer os seus kleshas pessoalmente, intimamente, a partir da sua própria experiência. ”
Sua Santidade explicou que o segundo passo é aprendermos a estabilizar as nossas mentes para que possamos usar as qualidades positivas, tais como o amor e a compaixão, como ferramentas para lidarmos com as situações difíceis, em lugar de automaticamente permitirmos que os kleshas determinem a nossa reação.
O terceiro passo ao lidar com nossos kleshas é tomar a decisão ou compromisso de não se deixar dominar por eles. Essas decisões ou compromissos podem ser esquecidos, então é importante que nos lembremos periodicamente de que nós realmente não permitiremos que a raiva tome conta de nós. Conforme o tempo passa, o hábito de não ficar com raiva vai ficando cada vez mais forte. ”
Clique aqui para ler as outras instruções sobre meditação dadas por S.S. Karmapa.
Original disponível em: http://www.karmapaamerica2015.org/?p=1378http://
Traduzido para o português por KTC – Cláudia Marcanth.
Revisado e editado por Cláudia Carréra.
KTC, julho de 2015