A Tocha da Verdade

Ensinamento de Gyalwang KarmapaKarmapa ensinamento Kagyu Monlam 2
31 de dezembro de 2012, no Kagyu Monlam

A forma correta de praticar o Budadharma

Gyalwang Karmapa chegou em procissão. Fez três prosternações e sentou-se em um trono baixo – uma adaptação de um modelo de poltrona -, cercado pelos seus lamas, com Gyaltsab Rinpoche à sua direita e Jamgon Kongrul Rinpoche à sua esquerda. O tradutor Ringu Tulku sentou-se à frente na primeira fileira de lamas e, espreguiçando-se atrás dele, o pequeno e bochechudo Drupon Dechen Yangsi podia ser claramente visto pelas imagens geradas pelos monitores.

Gyalwang Karmapa explicou que havia escolhido aquele texto, escrito por Jamgon Kongtrul Lodrö Thaye, porque o tema do Monlam era a comemoração da linhagem de Jamgon Kongtrul. S. S. Karmapa acrescentou que não tinha a intenção de discorrer sobre todo o texto naquele ano, uma vez que não via benefício em apressar as coisas; mas que esperava ser capaz de abordar de maneira abrangente os temas refúgio e Vajrasattva, especialmente porque aqueles que já haviam recebido iniciação de Vajrasattva teriam, então, tudo o que precisavam para praticar o Vajrasattva.

[O que se segue é um sumário dos pontos principais.]

O que caracteriza uma genuína prática do dharma? Parece que muitos que pensam estar praticando o dharma, na verdade não estão.

Quando estudamos as escrituras, estas descrevem a maneira ideal de praticar o dharma, e, a partir daí, cabe a nós praticá-lo da melhor forma que pudermos, passo a passo, dependendo da nossa situação. Entretanto, nós devemos sempre fazer um esforço para colocar as nossas metas o mais alto possível, em vez de sentirmo-nos inseguros ou subestimarmos nosso potencial. Nosso ponto de vista deve ser entender o ideal e colocar nosso foco nele.

Apesar de algumas coisas que consideramos como práticas importantes, tais como sair em peregrinação, prosternações, recitação de mantras e circum-ambulações fazerem parte da prática do dharma, é questionável se tais práticas, sozinhas, podem ser chamadas de uma prática pura.

Para começar, devemos ter total devoção e confiança nas três joias: Buda, Dharma e Sangha; mas também devemos examinar a natureza dessa devoção e confiança. A devoção tem que vir do fundo de nossos corações – não se trata de apenas unir nossas duas mãos e repetir palavras!

Devoção e fé cega não são a mesma coisa: desenvolver tal devoção e confiança não acontece automaticamente, exceto para uns poucos que têm marcas e conexões cármicas muito fortes. Pelo contrário: gerar tal devoção e confiança é um lento processo; mas ambos são essenciais para o caminho da liberação. A devoção tem que nascer de uma clara compreensão. Primeiro, temos que encontrar um lama genuíno e receber ensinamentos genuínos. É a partir daí que vem a clareza da mente e, com ela, a possibilidade de entendermos causa e efeito e como a prática do dharma pode nos transformar. Não basta somente seguir cegamente o que o professor diz.

Precisamos de entendimento e clareza e não de fé cega.

Entender a causalidade é o fundamento para a prática do Dharma. Precisamos compreender os efeitos da prática, o que fazer, o que não fazer e as consequências. Essa é a verdadeira prática do dharma. Quando temos essa clareza e convicção, podemos decidir, por nós mesmos, o que devemos fazer; e isso acrescenta profundidade a qualquer coisa que façamos, como as prosternações, por exemplo. O mesmo vale para a devoção.

A prática do Dharma deve tornar-se um modo de vida. A verdadeira devoção nasce quando fica claro e certo para nós que não temos opção, a não ser agir dessa forma. Essa é a base para a verdadeira devoção, prática e estudo. Nós precisamos ter um professor e receber dele ensinamentos e instruções. Tais ensinamentos e instruções podem ser longos ou curtos. O importante é que, ao colocarmos esses ensinamentos e instruções em ação, nossa prática do dharma passe a ser um modo de vida e não algo restrito aos períodos que passamos sentados na nossa almofada de meditação ou praticando durante as sessões.

O guru é essencial: entretanto, algumas pessoas pensam que podem praticar sem um professor. Nós podemos pensar que sabemos como fazer as prostrações, mas é o professor quem nos ajuda a compreender a natureza da prática para que a nossa prática transforme nossas mentes. Precisamos de três coisas: instruções de um professor, estudo e reflexão. Em suma, ninguém atinge a iluminação somente completando um número de prostrações e circum-ambulações.

Em última análise, a medida do sucesso da nossa prática reside na transformação de nossas mentes.

O valor do ngöndro é voltar nossas mentes para o Dharma

Refletir sobre as duas primeiras preliminares comuns – a preciosidade da vida e a impermanência – combate o apego a essa vida. Quando já tivermos refletido sobre ambas suficientemente, passamos para o segundo nível: refletir sobre carma, causa e efeito e sobre o sofrimento intrínseco do samsara. O propósito aqui é o de desistirmos de um apego a vidas futuras e desenvolvermos uma genuína renúncia ao samsara.

Completar o ngöndro com sucesso não é simplesmente fazer 100.00 prosternações. Se quisermos saber se o ngöndro está funcionando, devemos observar o estado de nossa mente. As emoções negativas continuam controlando a nossa mente ou elas estão diminuindo? A todo momento precisamos aplicar os melhores antídotos para combater as negatividades em nossa mente.

A prática genuína do Dharma não se trata de:

  • Seguir regras ou imitar alguém; trata-se de transformar a nós mesmos, e nós somos os únicos que podemos fazer isso, trabalhando os estados negativos de nossa mente.
  • Coisas externas ou rituais; trata-se da nossa mente e de transformação interior.

Transformar a nós mesmos não é mudar nossa aparência externa ou aspectos do nosso comportamento externo, tais como a nossa maneira de falar. Também não se trata de suprimir nossa raiva e nossos descontentamentos de tal forma que eles fiquem escondidos do mundo exterior. Isso não é praticar o dharma de maneira genuína. Muito pelo contrário – quando transformamos nossa mente livrando-nos dos estados negativos dela, nossa aparência externa, modo de falar e comportamento mudam automaticamente também. Transformação vem de dentro.

Assumindo responsabilidades

[O que se segue é um sumário editado parafraseando os ensinamentos de Gyalwang Karmapa.]

Estudo, reflexão e meditação estão interconectados quando seguem um caminho genuíno. O que exatamente são estudo, reflexão e meditação? A sabedoria que o estudo propicia não tem a ver com colecionar vários tipos de ensinamentos. Quando simplesmente escutamos os ensinamentos, tendemos a esquecê-los. Esse não é o tipo de estudo ao qual estamos nos referindo.

O estudo e a sabedoria que nasce dele são duas coisas separadas. A sabedoria que é obtida através da escuta vem primeiro da lembrança das palavras. Quando os significados das palavras permanecem no fluxo de nossa mente – isso é o que chamamos de sabedoria que vem da escuta. Essa sabedoria é gerada em nós com a ajuda de uma outra pessoa. Pode ser um professor ou qualquer outra pessoa.

A reflexão baseia-se na escuta e compreensão cuidadosas. Quando terminamos de compreender o que escutamos, nós refletimos sobre o assunto. Nesse momento, não contamos com a ajuda ou o poder de ninguém. Nós refletimos continuamente sobre aquele assunto, tentando entendê-lo profundamente.

Depois do exame e da reflexão, nós ganhamos um claro entendimento de que, se treinarmos dessa forma, certas experiências vão surgir. A convicção então se beneficiou com a compreensão e a investigação – isso é o que chamamos de sabedoria gerada pela reflexão.

Do mesmo modo, podemos dividir reflexão em duas partes: a reflexão propriamente dita e a sabedoria que surge com a reflexão. Quando desenvolvemos a sabedoria da reflexão, nós não apenas entendemos o sentido de todos os estudos que fizemos, como também a forma pela qual eles nos levam à transformação. E então, ficamos bastante motivados e inspirados para praticar os ensinamentos. Isso é o que chamamos de sabedoria gerada pela reflexão.

O resultado da investigação e da sabedoria que nasce a partir dela é deixar-nos tão conscientes da importância de praticar imediatamente, que sentimos uma necessidade urgente de procurar um lugar quieto e praticar.

Contudo, sem a meditação o estudo torna-se estático. Se você entende algo intelectualmente mas tal entendimento não interage com a sua experiência, então esse é um entendimento que não será capaz de provocar uma transformação em você.

A palavra “meditação” significa tornar-se familiarizado. Tentamos usar o que aprendemos para subjugar nossa mente endurecida. Quando fazemos disso um hábito, então o hábito passa a ser a nossa vida. A prática do dharma não é separada da nossa vida. Nós nos tornamos o dharma. O dharma torna-se a nossa vida. A bodhicitta não está do lado de fora, separada da nossa mente. Misture sua experiência com a bodhicitta. Combinar estudo e meditação desde o começo é muito importante.

Meditação existe para aprimorar a mente. Isso é a prática do dharma; isso e nada mais. Nós obtivemos a preciosidade da vida humana e entramos no dharma. Ao nos engajarmos na prática, devemos torná-la verdadeira. Para fazermos isso, precisamos voltar nossa mente em direção ao dharma. Nós desenvolvemos a devoção, confiança e convicção no Buda, dharma e sangha.

Morte e impermanência

Todos têm medo da morte, até os animais e os bárbaros de equivocada visão. Tal medo não é particularmente especial. Refletir sobre a impermanência, entretanto, significa saber que temos a preciosa vida humana e que esta não irá durar para sempre. Não temos muito tempo. Quando nos damos conta da preciosidade do nosso tempo, sentimos que devemos fazer alguma coisa imediatamente. Eu preciso fazer algo agora mesmo; não posso esperar. Isso passa a ser a coisa mais importante na vida.

Se você gera bodhicitta, torna-se ainda mais urgente agir porque você tem a capacidade de trabalhar para o bem dos seres sencientes e de fazer algo muito relevante nesse exato momento. A força dessa motivação traz entusiasmo e desejo de agir prontamente. Quando fazemos algo somente por nós mesmos, não é tão urgente; mas quando existe uma chance de beneficiar muitas outras pessoas, aí a urgência cresce.

Uma verdadeira compreensão da impermanência não pode surgir a não ser que tenhamos uma forte experiência da preciosidade da nossa vida humana. Isso nos liberta de um apego demasiado às atividades dessa vida.

16 estados desfavoráveis

Reflita sobre as condições favoráveis que o levaram a poder praticar o dharma e seja útil nessa vida. A maioria de nós teve e tem todas essas condições favoráveis. Se não as tivéssemos, não estaríamos aqui nesse exato momento.

Entretanto, mesmo tendo as oportunidades certas e todos os estados positivos e liberdades, nós ainda podemos nos ver impedidos de praticar por causa das 16 condições desfavoráveis.

8 estados desfavoráveis baseiam-se nas circunstâncias atuais:

  1. Fortes emoções negativas estão nos perturbando muito;
  2. Estamos sob a influência de companhias corruptoras;
  3. Nossos pontos de vista e práticas estão equivocados;
  4. Temos inclinação para uma enorme preguiça;
  5. Em função de más ações no passado, uma onda de obstáculos avança em nossa direção;
  6. Estamos sendo controlados por outras pessoas;
  7. Entramos no dharma porque precisamos de comida ou vestuário;
  8. Podemos parecer estar no dharma, mas nosso objetivo é o lucro ou a fama.

8 condições desfavoráveis baseiam-se na mente:

  1. Temos muito apego ao corpo e à saúde;
  2. Nosso caráter é extremamente torpe e nossas ações são muito mesquinhas;
  3. Não importa o quanto nosso professor explique – continuamos sem medo dos reinos inferiores;
  4. Não temos nenhuma fé na benção da liberação;
  5. Gostamos de fazer coisas que não são saudáveis;
  6. Não gostamos de praticar o dharma, assim como os cães não se sentem inclinados a comer grama;
  7. Violamos os princípios de bodhisattva e de outros votos;
  8. Quebramos os sagrados compromissos com o guru e com os nossos irmãos e irmãs Vajra.

Nós temos todas as condições favoráveis porque possuímos a especial inteligência de agir buscando os benefícios de longo prazo. Somos capazes de compreender e formular nosso pensamento para fazer algo benéfico. Nós não devemos usar nossa inteligência especial para ferir ou destruir os outros. Se fizermos isso, terminaremos destruindo a própria raça humana. Precisamos usar essa inteligência privilegiada para ajudarmos uns aos outros e para fazer algo que seja realmente relevante.

Observem como tratamos os animais: nós comemos as suas carnes, destruímos os espaços onde vivem e os levamos à extinção. Uma vez, durante uma conferência ambiental, alguns monges ficaram confusos com a ideia de que deveríamos tentar proteger os tigres. Por que protegê-los – argumentavam os monges – os tigres são cruéis e devoram seres dóceis e herbívoros como os cervos. Entretanto, um dos contos Jataka narra a história do bodhisattva que ofereceu sua carne para uma tigresa faminta. Se o tigre não fosse importante, por que razão o bodhisattva sacrificaria seu corpo? Temos muito medo dos tigres, mas estes não são tão perigosos quanto os seres humanos.

Destruímos e provocamos o sofrimento de tantos seres e animais. Criamos armas que podem eliminar bilhões de seres em um segundo. Somos os seres mais poderosos do mundo, precisamos pensar sobre nossas responsabilidades. Nós não apenas infligimos sofrimento aos outros, mas também criamos condições que podem nos ferir diretamente e ferir futuras gerações. Quando enxergamos isso claramente, temos que assumir nossas responsabilidades.

Impermanência e consciência da morte

[O que se segue é uma versão resumida da fala de Gyalwang Karmapa.]

Esse é o primeiro dia do primeiro mês de 2013 e eu gostaria de oferecer o meu tashi delek e votos de um ano auspicioso para todos aqui presentes. Eu ofereço minhas preces para que todos vocês tenham boa saúde e para que todas as suas atividades voltadas para o dharma e para o mundo de um modo geral sejam bem sucedidas. Eu também gostaria de enviar, através de vocês, meus votos de felicidades para todos aqueles que os cercam – familiares e amigos próximos.

Nos últimos meses, aqui em Bodhgaya, tenho orado ao Buda. Quando eu era bem novo, fui apontado como uma reencarnação de um lama ou de um tulku. Eu mesmo não sei dizer que tipo de reencarnação eu sou, mas como recebi esse título de ser uma encarnação do Buda Karmapa, eu tomo isso como uma oportunidade de poder servir e ajudar. Eu oro para que, com todo o esforço que me for possível fazer através do meu corpo, minha fala e minha mente, eu seja capaz de beneficiar todas as formas de vida – nessa vida e em todas as outras que ainda estão por vir.

E isso não é só para mim mesmo. Eu gostaria de orar para que todos vocês também consigam engajar-se em trabalhos benéficos, tornando-se úteis a vários seres vivos. Essa prece é o meu presente para vocês, já que não tenho mais nada a oferecer. Eu gostaria que todos vocês pudessem ser como o Karmapa. Dessa forma, eu oro para que, assim como eu tive a oportunidade de ajudar todos os seres vivos, vocês tenham, também, a chance e a capacidade de realmente ajudar os outros.

[Gyalwang Karmapa, então, leu em voz alta o trecho do texto “A Tocha da Verdade” que discorre sobre impermanência e consciência da morte.]

Antigos mestres kadampas ensinaram a impermanência em cinco aspectos.

Em primeiro lugar, nada permanece. Tudo muda, minuto a minuto, a cada tique-taque do relógio. Nós, entretanto, impomos uma continuidade a todos esses momentos de mudança, acreditando, por exemplo, que somos as mesmas pessoas que fomos quando éramos bebês – o que, claramente, não é verdade. Misturar tudo nos confunde e é isso o que nos impede de enxergar a impermanência – a realidade que está acontecendo o tempo todo.

Em segundo lugar, nós somos capazes de ver como as mudanças ocorrem fora de nós. Quantas pessoas já morreram? Quem é o outrora famoso que hoje é desconhecido? Quem é o outrora pobre que hoje é rico? A vida está sempre se movendo. O que percebemos lá fora é justamente a base para a descoberta do que há dentro de nós e é a partir da nossa própria mente que devemos entender a impermanência.

Em terceiro lugar, nós não sabemos quando a nossa morte vai chegar. Ser jovem não é garantia contra a morte; qualquer um pode morrer de repente. O fato de termos nascido significa que iremos morrer. Mas não queremos isso, portanto, cercamos a morte com medo e ansiedade. Em lugar disso, o que deveríamos fazer é preparar-nos para a morte. Se compreendermos a morte como algo natural, poderemos encará-la com uma grande paz de espírito.

Podemos considerar cada dia como uma vida inteira. Quando acordamos, nascemos; quando nos lavamos, estamos lavando um recém-nascido; quando tomamos café da manhã, estamos mamando o leite de nossas mães. Conforme o dia passa, vivemos todos os estágios da vida: a infância, adolescência, juventude, velhice e, por fim, quando nos deitamos à noite para dormir, a morte. Na manhã seguinte, nascemos de novo. Essa maneira de levar o dia tem três benefícios. Aprendemos a dar valor a cada dia de nossas vidas (frequentemente desperdiçamos nossos dias). Diante da morte, podemos pensar que tudo acabou, que só sobraram as trevas, mas na realidade cada momento é uma oportunidade, então podemos ter esperança. E, por último, se tivermos feito algo errado ou sido más pessoas, teremos a chance de mudar.

Em quarto lugar, pensar sobre a impermanência torna-se uma preparação para a morte propriamente dita. Se pudermos refletir sobre a morte repetidamente, então a morte não chegará abruptamente, como uma grande surpresa. Já tivemos a oportunidade de pensar sobre ela, de experimentar como as mudanças acontecem e de desenvolver um certo destemor.

Em quinto lugar, precisamos pensar no que acontecerá após a morte. Não poder ver algo não significa que este algo não existe. A vida após a morte não pode ser provada com os nossos atuais conhecimentos e instrumentos científicos, mas observando a história da ciência, podemos perceber que muitas coisas que não podiam ser compreendidas ou provadas no passado puderam sê-lo tempos mais tarde.

Se for verdade que a morte é o final de tudo, não há problemas. Mas se existe vida após a nossa vida atual, nós devemos nos preparar para ela. Quando morremos, não podemos carregar nosso corpo ou nossa saúde conosco. O que realmente podemos levar conosco são os resultados das nossas ações e nossos padrões de conduta. São eles quem determinarão como será nossa futura vida. Então, precisamos nos preparar em termos de muito longo prazo e planejar o que faremos para beneficiar os outros.

Devemos contemplar o carma – o modelo da causa e efeito – não apenas uma ou duas vezes, mas várias vezes, repetidamente, refletindo sobre aonde os feitos positivos e os negativos irão nos levar. Ao fazermos feitos positivos, devemos nos comportar como as pessoas pobres. Estas, se ganham algo pequeno, valorizam e cuidam do que receberam. Do mesmo modo, devemos apreciar cada pequena coisa positiva que fazemos. Pessoas ricas acham que só as coisas grandes ou caras têm valor, eles não apreciam as pequenas e boas coisas. Mas não podemos fazer tudo em grande escala; devemos fazer pequenas coisas e apreciá-las.

Também precisamos nos livrar do que é negativo, principalmente as várias aflições que temos: aversão, orgulho e por aí vai. Essas coisas não desaparecem todas de uma vez só, dessa forma, começamos identificando nossa maior falha, depois todas as outras, trabalhando-as passo a passo. Essa é uma ótima maneira de nos prepararmos para a morte.

Se meditarmos profundamente sobre a preciosidade da vida humana e a impermanência, isso nos libertará das amarras da nossa vida atual e da busca por um sucesso baseado nos seus valores. Os grandes mestres do passado ensinaram-nos que a preocupação em conquistar uma vida boa é o maior obstáculo para a nossa prática do dharma. Não podemos misturar sucesso mundano com sucesso no dharma: os dois têm que estar separados.

Existem praticantes, como Milarepa, que, vestidos apenas com um manto e dispostos a comer muito pouco, foram morar no meio de altas montanhas. Isso foi bom para ele, mas não quer dizer que iria funcionar para nós. Se tentássemos copiá-lo, poderíamos não sobreviver nem por um dia. Abrir mão de questões mundanas não significa que devemos ficar sem comer, sem roupas para vestir ou sem boas coisas. Nós simplesmente devemos operar dentro dos domínios da nossa própria pessoa, dentro dos limites das nossas características e qualidades particulares.

Somos muito apegados às questões da nossa vida presente. A indústria do consumo, sabendo disso, manipula-nos através de propagandas. Estas têm um efeito especialmente forte junto aos jovens, que sofrem acreditando que se não tiverem nas mãos a última novidade do mercado, suas vidas perderão o sentido. Acham que se tiverem o tal objeto ficarão mais bonitos e coisas boas acontecerão com eles. Eles não questionam: “Isso tudo é verdade? Ter esse objeto vai me fazer mais feliz?”. Na verdade, são eles mesmos quem têm que fazer com que as coisas fiquem boas e criar sua própria felicidade.

No Dharma, usamos nossa inteligência para pensar sobre a nossa situação e enxergar claramente se necessitamos de alguma coisa ou não. Que benefícios ou problemas tal coisa pode me trazer? Isso será bom para mim a curto prazo? E a longo prazo? Questionamo-nos para achar a verdade e, então, vivemos de acordo com ela. Se seguirmos cegamente o que os outros fazem, não conseguiremos viver nossa própria vida ou descobrir seu verdadeiro propósito. Se fizermos coisas que tragam benefícios para nós mesmos e para os outros, estaremos realmente praticando o dharma. Uma vez que o nosso objetivo é nos tornarmos pessoas nobres e genuínas, deixamos de ficar totalmente voltados para nossa vida mundana e passamos a nos voltar mais para o dharma.

Isso completa a fala sobre as duas primeiras preliminares – a preciosidade da vida humana e a impermanência e consciência da morte, que são as mais importantes. Frequentemente pensamos que, uma vez que tenhamos terminado a nossa preparação, poderemos simplesmente deixá-la de lado e seguirmos para a prática principal. Mas esse procedimento não está certo. “Preliminar” significa que devemos fazer algo muito importante antes de prosseguirmos. Portanto, em se tratando de qualquer prática que queiramos realizar, precisamos desses dois pensamentos – a preciosidade da vida humana e impermanência e consciência da morte – desde o começo até o final. Se eles não estiverem presentes, a prática não correrá bem, portanto, mantenha-os em mente durante o começo, meio e fim da prática. O grande iogue Milarepa disse que se não lembrarmos de impermanência e morte, nossa prática não será profunda. O mais importante é que a prática existe para trabalhar nossas mentes e nos transformar.

[Durante essa sessão, Gyalwang Karmapa continuou a leitura do texto e de seus comentários. O relato abaixo é baseado na tradução feita por Ringu Tulku.]

Gyalwang Karmapa começou com um resumo dos ensinamentos sobre as preliminares comuns. Através da meditação sobre a preciosidade da vida humana e a impermanência, podemos combater o apego aos prazeres dessa vida e colocar o nosso foco nas vidas futuras. Ninguém quer nascer nos reinos inferiores.

Isso nos leva a refletir sobre a imutabilidade da lei cármica – ação, causa e resultado – para que possamos compreender os efeitos dos pensamentos e ações negativas. Entretanto, no final das contas, é o entendimento da impermanência que fará com que nos demos conta de que não pode existir felicidade duradoura dentro do samsara e isso gerará, em nós, o desejo de libertação e a força para tomarmos a decisão de escapar da ilusão.

Ação, causa e resultado

Gyalwang Karmapa explicou que o Budadharma é a descrição da realidade. O Budadharma descreve a relação entre as causas, as condições e os resultados de ambas. Quando compreendemos a relação entre causa e efeito e sabemos reconhecer quais as ações que causam dor e sofrimento e quais as que resultam em benefícios e felicidade, passamos a tentar abandonar as primeiras e a adotar as segundas. Isso é praticar Budadharma.

Como exatamente essa relação causal funciona? É difícil saber como é a conexão complexa e precisa entre as causas e seus efeitos; isso é algo muito sutil e intrincado. Contudo, geralmente uma causa boa cria um resultado bom e uma causa má cria um mau resultado. O mais importante é sempre a nossa motivação – é ela que vai determinar se uma ação é positiva ou negativa. Gyalwang Karmapa sugere que talvez a intenção seja mais importante do que a ação.

Se a nossa mente não está no seu claro e natural estado, mas dominada pelos kleshas – estados de perturbação da mente – e pela causa primária da ignorância, nós criaremos ações negativas que resultam em ainda mais sofrimento. O mais importante é saber como nossa mente funciona – por exemplo: matar é uma das 10 ações não virtuosas (as causas do samsara). Porém, se acidentalmente ou não intencionalmente matarmos alguém, apesar de ainda ser uma ação negativa, essa não é considerada uma das 10 ações não virtuosas porque não existe a motivação para matar. Para que uma ação seja não virtuosa tem que haver a intenção.

As quatro preliminares comuns são essenciais

No começo, tentamos acumular feitos positivos que serão a causa para uma vida futura melhor, mais longa e assim por diante; mas mais tarde nosso objetivo passa a ser iluminação e liberação.

As quatro contemplações que voltam nossa mente para o dharma – a preciosidade da vida, a impermanência, a lei do carma e o sofrimento do samsara – devem ser entendidas. Precisamos ganhar algum conhecimento e alguma experiência a partir delas, caso contrário, quando tentarmos fazer as práticas incomuns do ngöndro, estas não se tornarão uma causa para a nossa liberação. Se ainda estivermos guiados pelo apego a essa vida e às oito questões mundanas, não teremos um interesse genuíno em trabalhar para o benefício de nossas vidas futuras. Se estamos unicamente preocupados com os apegos e desejos dessa vida, então fazer prosternações, práticas de Vajrasattva ou oferecimentos de mandalas não vão nos transformar. De acordo com Abdhidharmakosa, leigos e monges enfrentam diferentes desafios nesse aspecto: os primeiros acham difícil mudar suas visões básicas e os últimos têm que encontrar um meio-termo entre a liberação e as questões dessa vida, já que dependem de doações para sobreviver.

Quando vêm os tempos difíceis, muitos chefes de família recorrem às deidades mundanas e pedem por rituais relacionados com estas. Isso mostra não apenas uma falta de entendimento, mas também uma falta de confiança nos objetos de refúgio. Basicamente o que essas pessoas têm é uma fé cega e um desconhecimento parcial ou total da lei de causa e efeito.

O verdadeiro sentido de buscar refúgio

Uma confusão pode aparecer quando ouvimos dizer que, depois de tomarmos refúgio no Buda, no Dharma e na Sangha, não devemos tomar refúgio em mais nada ou ninguém. Se você está doente, você pode ou não visitar um médico? Na verdade, esse não é o sentido de “tomar refúgio”. E “refúgio” não é o mesmo que um pedido de ajuda dos desamparados ou necessitados.

O verdadeiro refúgio é uma profunda compreensão de que somente após nos percebermos como Buda (o que é o mesmo que atingir a iluminação) e a não ser que percebamos isso, é que poderemos nos libertar completamente dos sofrimentos, medos e perigos do samsara… Desse modo, refúgio não se trata de orar a alguém ou procurar o socorro e a solidariedade de alguém. Trata-se de conquistar isso por nós mesmos, conscientes de que nós mesmos temos o poder de nos libertar. Esse estado em que não há sofrimento é um refúgio interno.

Gyalwang Karmapa esclarece que o verdadeiro sentido de tomar refúgio e buscar refúgio está ligado a cada um de nós – sou eu que preciso do refúgio ou que quero atualizar o meu estado de budeidade. Sou eu que preciso trabalhar para o refúgio. Isso é tomar refúgio.

É claro que há um aspecto do refúgio que é exterior: Buda, Dharma e Sangha – é por causa da existência deles que nós podemos estudar e praticar o Dharma. Em última instância, porém, é para o refúgio interior que precisamos ir quando tomamos refúgio; devemos assumir responsabilidade por nós mesmos. Alguns entregam todas as suas responsabilidades pessoais para Buda, Dharma e Sangha ou para seus lamas. Essa pessoas dizem: “Eu tenho fé e devoção, então agora é tudo com vocês.” E, a partir daí, agem como bem entendem. Mas se cometemos feitos negativos, iremos, inevitavelmente, sofrer consequências negativas; não há nada que os lamas possam fazer para evitar que isso aconteça.

Tal atitude não deve ser confundida com fé e devoção genuínas a um lama. O lama ou o amigo espiritual é essencial ao caminho da liberação. Ele ou ela nos dão instruções e orientações.

Quando você diz que conta com o seu professor, tem completa confiança nele, isso quer dizer que, sim, você confia e conta com o seu professor, portanto, fará aquilo que o professor pedir que você faça e seguirá a orientação dele. Dessa forma, você assumirá suas responsabilidades.

Milarepa confiava completamente em Marpa e deu tudo para o seu professor, mas Milarepa também fazia tudo o que Marpa lhe dizia que era para ser feito. Milarepa agia com diligência, exatamente de acordo com as instruções de seu professor. Do mesmo modo, nós devemos assumir nossas responsabilidades e não entregar todas elas ao nosso professor.

As deficiências do samsara

Gyalwang Karmapa, então, leu a sessão seguinte do primeiro texto de Jamgon Kongtrul e concluiu seu ensinamento sobre as quatro contemplações preliminares com a quarta delas – as deficiências do samsara. Sob o domínio do carma negativo e dos estados perturbados da mente, nós nunca estaremos livres, apenas viveremos um sofrimento após outro. Essa é a natureza do samsara. Devemos fazer o que estiver ao nosso alcance para nos libertar do controle das ações e estados negativos. Esse deve ser o nosso principal objetivo.

As quatro práticas preliminares incomuns

Embora não houvesse tempo suficiente para entrar em maiores detalhes, Gyalwang Karmapa deu instruções gerais de como realizar as quatro práticas incomuns do ngöndro de acordo com o longo texto sobre o Ngöndro Kagyu: Refúgio e Prostração, Recitação de Vajrasattva, Oferecimento de Mandala e Guru Yoga. S.S. Karmapa também transmitiu, através da leitura, a sua própria compilação de um ngöndro conciso.

Dedicações e agradecimentos

Gyalwang Karmapa finalizou a sessão primeiramente dedicando o mérito dos últimos dias:

“…quaisquer ações positivas que tenhamos acumulado, quaisquer coisas positivas que tenhamos feito, eu gostaria de dedicá-las a todos os seres sencientes através do cosmo; que eles encontrem a paz eterna, a felicidade e a grande iluminação. E eu peço que todos vocês façam o mesmo…”

Então, S.S. Karmapa agradeceu especialmente ao Kyabje Jamgon Rinpoche e Kyabje Gyaltsab Rinpoche, seguidos por todos os Kenpos, Tulkus, a Sangha e as pessoas que vieram de lugares longínquos, enfrentando várias dificuldades e problemas e superando todos eles. E, em seguida, agradeceu a todos que estiveram presentes em Monlam através da internet.

Finalmente, Gyalwang Karmapa agradeceu ao governo e ao povo da Índia:

O governo e o povo da Índia têm sido sempre muito generosos e gentis com todos nós, dessa forma, eu queria agradecer ao Governo e ao povo da Índia de um modo geral, especialmente ao Governo e ao povo de Bihar, em particular às autoridades, administração e população local de Bodhgaya. Porque, para nós, Bodhgaya é um lugar muito, muito importante e acreditamos que não apenas a terra, mas toda a população de Bodhgaya é realmente abençoada por Buda. Portanto, vocês criaram e deram a nós essa grande oportunidade, espaço e ambiente positivo para realizarmos esse maravilhoso Monlam. Desse modo, eu gostaria de agradecer a todos vocês do fundo do meu coração. E não somente isso: eu gostaria de dedicar quaisquer efeitos ou carma positivos que tenhamos gerado aqui para o bem-estar desse país, governo e todo o povo da Índia e Bihar, e especialmente o de Bodhgaya.

 

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Original em inglês, disponível em: http://kagyuoffice.org/gyalwang-karmapas-teaching-on-the-torch-of-certainty/

Tradução para o Português KTC – Cláudia Marcanth
KTC, julho de 2013

© Kagyu Office – http://kagyuoffice.org/

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Se você lê em inglês, o livro The Torch of Certainty faz parte do acervo de nossa Biblioteca e é disponibilizado para empréstimo domiciliar.