Na nossa vida individual, existe a possibilidade de começarmos a ficar exaustos do sofrimento e dos muitos pensamentos de insatisfação – e isso é válido para todos nós hoje aqui reunidos. Entretanto, geralmente somos autossuficientes, encontramos razoável felicidade para nós mesmos e, ainda que tenhamos certos problemas, não passamos por dificuldades extremas. Nós temos vivido em boas condições. Dessa forma, no momento, nós estamos relativamente felizes e sem maiores sofrimentos. É claro que desejamos manter essa felicidade no futuro; não queremos perdê-la jamais. Também temos esperanças de conseguir evitar qualquer sofrimento, mesmo o menor deles. Tais esperanças estão sempre em nossas mentes e sentimos que devemos manter garantida essa situação de estabilidade.
Falando a partir da nossa própria experiência de vida, às vezes, quando vemos pessoas sofrendo ou passando por dificuldades, subitamente sentimos compaixão – conhecendo ou não essas pessoas. Não existe uma lei que nos obrigue a sentirmos compaixão por alguém; tal sentimento surge espontaneamente. E mais: o sentimento do qual estamos falando surge espontaneamente não apenas em relação aos outros seres humanos, mas também em relação aos animais. Acredito que seja acurado dizer que todos nós temos esse tipo de compaixão.
Desse modo, acredito que tal sentimento nos transmite uma mensagem muito clara. Através dessa mensagem, aprendemos que, para vivermos em paz e felizes, nós precisamos contar com os outros seres. Vamos tomar como exemplo alguém que tenha uma vida boa, com ótimas condições e que não precisa contar com os outros para a sua própria felicidade. Uma pessoa como essa vive em excelentes condições, mas quando se depara com o sofrimento de outros seres, ela de repente percebe que sua vida satisfatória não depende apenas de ambientes agradáveis e circunstâncias favoráveis. Ela sempre terá uma sensação de insatisfação se não puder liberar os outros seres do sofrimento.
Deixem-me contar-lhes uma história ilustrativa. Vocês talvez tenham ouvido falar sobre Sarnath, o lugar onde Buda deu o primeiro ensinamento aos seus discípulos. Devido a isso, o lugar hoje é sagrado para todos os budistas. Entretanto, essa não é a única razão para que Sarnath seja considerado um lugar tão especial. Existe uma outra história maravilhosa que se passou no mesmo lugar, no tempo em que, em uma vida anterior, Buda praticava em seu caminho para a iluminação. Naquela época, a antiga Sarnath era governada por um rei chamado Kashi Narash, que gostava muito de comer carne de cervo. Os súditos do Rei matavam muitos cervos e ofereciam a carne à cozinha Real. Durante o reinado de Kashi Narash, Buda, em seu caminho para se tornar um bodhisattva, havia nascido como um cervo-rei. Devido ao gosto do Rei pela carne de cervo, muitos cervos eram mortos todos os dias e, gradualmente, centenas e milhares desses animais perderam suas vidas.
O cervo-rei sentia enorme compaixão pelos cervos e, por isso, um dia procurou o Rei. Como o cervo-rei era um bodhisattva, ele possuía qualidades extraordinárias, que eram frutos do acúmulo de méritos em suas vidas anteriores. Pelo bem dos outros cervos, o cervo-rei era capaz de conversar com o Rei em linguagem humana. Ele perguntou: “De quantos cervos Vossa Majestade precisa por dia?” O Rei respondeu: “Preciso da carne de um cervo inteiro para a minha refeição diária.” O cervo-rei disse: “Vossa Majestade não precisa caçar centenas de cervos por dia para a sua refeição. Dai-me a vossa permissão e eu enviarei um cervo todos os dias para a cozinha Real.” O Rei entendeu a situação e concordou com a ideia do cervo-rei. Depois disso, o cervo-rei passou a enviar um cervo por dia para a refeição do Rei e, dessa maneira, não havia mais a necessidade de que vários cervos perdessem suas vidas todos os dias. E assim foi: os cervos, um a um, iam sendo enviados ao Rei.
Um dia, a escolha recaiu em uma cerva prenhe. Esta, em lugar de dirigir-se ao Rei, encostou-se em um canto e começou a chorar. O cervo-rei viu a cerva chorando e ficou intrigado. Todos os outros cervos encaminhados ao Rei haviam partido felizes – não apenas por respeito à ordem do cervo-rei, mas também porque sabiam que seu sacrifício pouparia a vida de muitos outros cervos. O cervo-rei perguntou à cerva prenhe: “O que fez você chorar quando chegou a sua hora de ser enviada ao Rei?” Ela respondeu: “Eu não estou chorando por medo de perder a minha vida; estou somente pensando na jovem vida que está dentro de mim. Sinto-me triste pelo meu filho porque não está na hora dele morrer. Há muitas coisas para serem vistas no mundo. Meu filho vai morrer sem jamais ter visto a grama verde que gostamos tanto de comer. Meu filho não poderá sequer caminhar na terra com a minha família. Pensar em tudo isso me deixa muito triste.”
Quando a cerva contou-lhe as suas razões, o bodhisattva cervo-rei sentiu uma grande compaixão e disse-lhe: “Você não precisa ir hoje.” O cervo-rei decidiu ir no lugar da cerva prenhe. Quando ele chegou à cozinha Real, o cozinheiro do Rei o viu e não acreditou que o cervo-rei estava ali para oferecer sua própria carne. O cozinheiro pensou que o cervo-rei tinha algo para falar com o Rei e pediu-lhe que se encaminhasse aos aposentos Reais. O cervo-rei foi ao encontro do Rei e explicou-lhe a razão de sua vinda. O Rei disse: “Você deveria ter enviado outro cervo no lugar da cerva prenhe. Por que você veio?” O cervo-rei respondeu: “Hoje não é o dia daqueles cervos morrerem. Eles têm pelo menos vinte e quatro horas para viver nesse mundo; alguns ainda têm meses e anos pela frente. Eu não suportaria enviá-los hoje; acho que seria injusto fazer isso. E é por isso que eu vim aqui.”
Quando o Rei entendeu a situação, ele pensou: “Os ensinamentos nas escrituras dizem que matar seres humanos é um crime maior do que matar animais. Entretanto, apenas para encher nossos estômagos e trazer prazer para as nossas línguas pela manhã e à tarde, nós matamos e desfrutamos as vidas dos animais levianamente. Eu sou, provavelmente, o pior exemplo de maus-tratos aos animais.” O Rei, então, criou um parque de cervos para que estes pudessem aproveitar suas vidas em paz. E é por essa razão que o Parque das Gazelas, em Sarnath, pode ser visitado até hoje. Eu já estive lá várias vezes.
Essa breve história nos mostra que simplesmente possuirmos coisas materiais para a nossa sobrevivência e deleite não é o suficiente para completar nossas vidas. Precisamos de um forte coração para encarar os problemas e sofrimentos dos outros. Isso é muito importante e necessário, como podemos ver através da história aqui contada. A motivação para liberarmos os outros do sofrimento não é difícil de ser obtida e nem nos causará problemas. Pelo contrário: precisamos reforçar nossa motivação para enfrentar os problemas, sejam lá quais forem. Precisamos abrir nossas mentes para acomodar o bem e o mal. Por exemplo, quando muito enfraquecidos por alguma doença, na maioria das vezes, os pacientes são curados pela sua determinação e força mental e não pela medicina.
No Tibete, quando pegamos um resfriado, em vez de ficarmos abatidos e deprimidos, nós dizemos que, se comermos bem e não tivermos medo, ficaremos melhor e o resfriado irá embora. Eu não sei se o resfriado vai ou não embora com essa atitude, mas a dor provocada pela doença fica menor. Nós não temos que ter tanto medo. Se, ao pensarmos que pegamos um resfriado, entrarmos em pânico, isso somente irá fazer com que a doença piore. Como dizemos, a condição daquele resfriado vai se tornar a causa do aparecimento de todas as doenças.
Contudo, se não formos capazes de ter força mental para encarar as dificuldades desse mundo, será difícil alcançarmos a felicidade. Consequentemente, temos que fortalecer nosso poder mental pelo bem de todos os seres sencientes. Não devemos ficar em dúvida sobre o nosso poder mental – temos que ter confiança nele; confiança de que ele vai beneficiar os outros seres. Se aplicarmos uma profunda motivação pelo bem dos outros, os maiores beneficiados seremos nós mesmos. Acredito que é muito importante termos isso em mente.
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Em Heart Advice of The Karmapa. Dharamsala: Altruism Press, 2008. p. 61-64
Traduzido para o português por KTC – Cláudia Marcanth.
KTC, outubro de 2013
© 2008, S.S. Karmapa Ogyen Trinley Dorje.